Analisando: A mulher da casa abandonada e a violência simbólica

Tempo de leitura: 6 minutos

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Escrito por Ana Paula Brum – Psicóloga Especialista em Psicologia Clínica

INTRODUÇÃO

Eu acredito que muitos de vocês aqui já ouviram falar no caso da mulher da casa abandonada antes, mas se não, aqui vai um breve resumo: 

Essa história surge ao público em formato de um podcast da Folha de São Paulo, realizado pelo jornalista, sociólogo, escritor e roteirista Chico Felitti, que relata a sua investigação sobre uma mulher que vive misteriosamente em uma mansão caindo aos pedaços em uma das áreas mais nobres do Brasil.

Eu comecei ouvindo esse podcast super interessada pelo mistério e suspense que cerca essa história. Eu queria saber que raios de casa era aquela, quem era aquela mulher de atitude estranha e por que isso estava causando tanta curiosidade nas pessoas.

Terminei os episódios do Chico chocada e em certos momentos, emocionada também. Não era nada o que eu imaginava, e não escrevo isso em tom de crítica negativa. Foi uma boa experiência! 

Se você quiser conhecer o caso antes de saber a minha análise de cunho Psicológico e Sociológico, você pode encontrá-lo nas plataformas de podcasts e também no site da Folha de São Paulo. Caso você já saiba do que iremos falar aqui ou não se importa em receber alguns spoilers, vamos lá para os meus comentários:

ANÁLISE

A mulher de comportamento estranho citada no podcast é Margarida Bonnetti. Herdeira de uma família rica de São Paulo, tem 63 anos, foi casada com o engenheiro Renê Bonetti. Ela esteve na lista de procurados pelo FBI (a polícia federal de investigação norte-americana), acusada de cometer crimes nos Estados Unidos, como trabalho análogo à escravidão e agressão contra a ex-empregada doméstica (também brasileira). O casal foi denunciado à polícia americana no ano 2000.

Renê Bonetti chegou a ser julgado, condenado e preso nos Estados Unidos, onde cumpriu pena, e foi solto. De acordo com o podcast, na época de seu lançamento, o engenheiro ocupa o cargo de diretor  em uma empresa que presta serviços para a NASA. À época do julgamento, Margarida fugiu para o Brasil com o pretexto de cuidar da família, onde vive até hoje.

A lista de maus-tratos contra a empregada é extensa. De acordo com as investigações, o casal Bonetti mantinha a funcionária presa em casa, a mesma dormia numa espécie de porão, o acesso à comida era restrito, já que os armários e a geladeira viviam trancados, ela não era regularizada como imigrante nos Estados Unidos e seu convívio com outras pessoas era bem limitado. Como se isso já não bastasse, a empregada não recebia remuneração pelo trabalho e o caso ficou ainda mais desumano quando os relatos afirmam que a mesma era violentada fisicamente por Margarida.

A negligência também imperava na residência. A funcionária permaneceu por anos sem acesso à consulta médica, ocasionando assim ao surgimento e agravamento de um tumor enorme, que aparentemente poderia ser claramente visto pelas pessoas tamanha a sua proporção. Ainda assim, os patrões mantinham os maus tratos e ignoravam a necessidade de cuidados médicos urgentes. E olha que essa pessoa que era relatada como “amiga” por Margarida.

Percebam que o objetivo aqui não é contar a história toda, em detalhes.  Se esse conteúdo aqui te trouxer essa curiosidade, você consegue achar o podcast facilmente na Internet, assim como reportagens sobre o caso. A intenção é fazer um pequeno recorte sobre uma camada de violência que pode passar despercebido aos ouvidos desatentos.

Acredito que você consegue perceber que o que não faltam ali são relatos e mais relatos de violência.

O próprio ato de se achar dono de alguém já é de embrulhar o estômago, mas ali também temos a violência física, patrimonial e psicológica facilmente identificadas.

E o que é trabalho análogo à escravidão?

De acordo com o site do ministério do trabalho e previdência do brasil, considera-se trabalho realizado em condição análoga à de escravo a que resulte das seguintes situações, quer em conjunto, quer isoladamente: a submissão de trabalhador a trabalhos forçados; a submissão de trabalhador a jornada exaustiva; a sujeição de trabalhador a condições degradantes de trabalho; a restrição da locomoção do trabalhador, seja em razão de dívida contraída, seja por meio do cerceamento do uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, ou por qualquer outro meio com o fim de retê-lo no local de trabalho; a vigilância ostensiva no local de trabalho por parte do empregador ou seu preposto, com o fim de retê-lo no local de trabalho; a posse de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, por parte do empregador ou seu preposto, com o fim de retê-lo no local de trabalho.

Mas e  a violência simbólica? Onde ela entra nisso?

Vamos começar conceituando a palavra: o conceito de violência simbólica foi elaborado por Pierre Bourdieu, sociólogo francês, para descrever o processo em que se perpetuam e se impõem determinados valores culturais. A violência simbólica se exerce através de algumas outras instâncias, como o PODER SIMBÓLICO, o HABITUS e a ILLUSIO, temas que eu posso trazer aqui depois pra esse texto não ficar muito extenso.

Pierre Bourdieu conta pra gente que a violência simbólica se manifesta em nosso contexto desde muito cedo, estando presente em instituições (como a escola, por exemplo), moldando formas de ser e limitando maneiras de expressão, que possam de alguma forma, causar aborrecimentos a quem possui o monopólio desse tipo de violência. 

Esse tipo de violência possui a propriedade de distorcer as percepções dos entes sociais a ponto de fazê-los concordar e validar as diversas formas de domínio por aqueles que não possuem o monopólio desse tipo de violação. Aos seres sociais que ali estão regidos pelo poder social, cabem serem submetidos constantemente a atos de imposição e de injunção que são, para o autor, disposições necessárias para que estes tenham a sensação de obediência sem sequer colocar essa sensação em questionamento.

Ao ser colocada em prática, a violência simbólica legitima a cultura dominante, que é imposta e acaba sendo naturalizada. Ao chegarem nesse último estágio, os indivíduos dominados não conseguem mais responder ou se opor com força suficiente; muitas vezes, sequer vendo a si mesmos como vítimas, sentindo que sua condição é algo impossível de ser evitado.

Um exemplo objetivo para isso é quando vemos uma frase racista vindo de uma pessoa não branca, ou uma mulher tendo um comportamento machista. Claro, nenhum tipo de comportamento como esse é aceitável, mas perceba que a ideia de desvalorização das minorias está tão “naturalizada” que é possível que alguém aja em desfavorecimento a ela mesma.

Curioso isso, não?

Bem, sendo curioso ou não, o fato é que Bourdieu afirma que a violência simbólica é cometida com a cumplicidade entre quem sofre e quem a pratica, sem que, frequentemente, os envolvidos tenham consciência do que estão sofrendo.

E já que estamos falando sobre as pessoas que possuem esse poder simbólico todo, o suficiente para moldar a realidade de todos, você consegue adivinhar quem são eles?

Naturalmente estamos falando aqui de homens cis, ricos, brancos, moradores de centros urbanos, cristãos, heterossexuais…

Percebe que fica muito mais fácil manter a sua posição de prestígio em cima de todo o restante que não se enquadra nessas características quando você tem um maquinário simbólico todo ao seu dispor? Maquinário que, no final das contas, é capaz de convencer à própria pessoa violentada que aquele tipo de violência é justificada ou normal. 

Estou falando disso tudo aqui pra engrossar o caldo dessa discussão sobre violências, porque aqui, para além de se tirar os direitos humanos de uma cidadã brasileira, tira-se também a própria noção que ela tem sobre si.

A vítima desses crimes passou anos (desde a infância) trabalhando na família de Margarida como empregada. Ela foi “adotada” justamente com esse propósito. Grande parte do que ela conhecia como mundo foi apresentado por essa família rica e branca. 

Suas possibilidades de vida estavam limitadas àquelas que ela já conhecia, e claro que aqui possui um forte contexto racial, de classe e gênero também.

Fica mais fácil entender isso quando percebemos que pesquisas do IBGE revelam que, atualmente (2022), cerca de 92% das pessoas ocupadas no trabalho doméstico no Brasil são MULHERES, das quais 65% são NEGRAS. Outro recorte importante a se fazer é o que escancara que normalmente essas mulheres negras possuem baixa escolaridade e são oriundas de famílias de baixa renda. 

ENCERRAMENTO

Eu espero que esse conteúdo aqui tenha servido para abrir seus olhos e ouvidos para uma compreensão sociológica desse caso importante que surgiu recentemente no Brasil.

Claro, o assunto não se encerra por aqui, até porque ele é extenso e achar que um conteúdo curto assim conseguem descrever tudo o que eu gostaria, seria até ingenuidade minha.

Informações importantes:

Como denunciar trabalho análogo à escravidão?

Casos de trabalho análogo ao escravo podem ser denunciados por meio do Disque Direitos Humanos, por meio de ligação telefônica ao número 100.

Se você sabe, ou desconfia, que uma pessoa tem seu trabalho explorado, denuncie. Denúncias anônimas podem ser feitas à Secretaria Especial da Previdência e Trabalho.

 

REFERÊNCIAS

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro, Editora Bertrand, 1989.

_______________. Razões práticas: Sobre a teoria da ação. São Paulo, Papirus Editora, 2008.

_______________. Sobre o estado. São Paulo, Editora Schwarcz, 2014.

IBGE – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) – dados do 4º trimestre de 2019 e de 2021. Elaboração: DIEESE. Disponível em: <https://www.dieese.org.br/infografico/2022/trabalhoDomestico.html>.

Ministério do Trabalho e Previdência. Combate ao Trabalho em Condições Análogas às de Escravo, 2020. Disponível em: <https://www.gov.br/trabalho-e-previdencia/pt-br/composicao/orgaos-especificos/secretaria-de-trabalho/inspecao/areas-de-atuacao/combate-ao-trabalho-escravo-e-analogo-ao-de-escravo>.

 


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